sábado, 4 de setembro de 2010

DOIS RIMANCES


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Os rimances são histórias muito antigas em verso, cavaleirescas, mais ou menos cortesãs. Podem vir do séc. XV. O primeiro que se transcreve é a outrora célebre Nau Catrineta, o segundo o Rimance de Dona Silvana.
Este género de poemas foi durante muito tempo de tradição oral, talvez ao modo do que se passou com as danças e cantares folclóricos, que também terão começado por ter origem cortesã ou fidalga. Em Portugal, quem primeiro cuidou da sua recolha foi o Cavaleiro de Oliveira, no séc. XVIII; no século seguinte Garrett continuou a tarefa, como a continuou mais tarde Teófilo Braga e outros. A ideia inicial da recolha foi romântica, como o aconteceu na Alemanha com os irmãos Grimm.
Os dois são poemas moralizantes e em ambos encontramos o que alguns chamam o maravilhoso cristão, isto é, a intervenção sobrenatural, e daí se enquadrarem na temática religiosa. No primeiro essa intervenção é clara, no segundo quase só sugerida. É interessante notar que a Nau Catrineta envia para a época das Descobertas marítimas.


NAU CATRINETA
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Lá vem a Nau Catrineta,
Que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia,
Que iam na volta do mar.
Deitaram sola de molho,
Para o outro dia jantar.

Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.
Deitaram sortes ao fundo,
Qual se havia de matar.

Logo a sorte foi cair
No capitão general.
- Sobe, sobe, marujinho,
Àquele tope real,

Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal.
- Alvíssaras, capitão,
Meu capitão-general!

Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal.

Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas,
está no meio a chorar.

- Todas três são minhas filhas,
Oh, quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.

- A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.
- Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar.

- Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar.
- Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.

- Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar.
- Dar-te-ei a Nau Catrineta,
para nela navegar.

- Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar.
- Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?

- Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar.
- Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar.

A minha alma é só de Deus,
O corpo dou-o eu ao mar.
Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.

Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar.
E à noite a Nau Catrineta,
Estava em terra a varar.

Quando se fala de “terras de Espanha”, entende-se da Península Ibérica. Neste sentido antigo, geograficamente, mesmo que não politicamente, Portugal também era Espanha.
Como se viu, o cavaleiro foi sujeito a uma tentação grave, mas venceu-a, preferindo a morte a ceder às propostas diabólicas. Vem mesmo um anjo dar-lhe uma ajuda no momento mais grave.
A Dona Silvana que se seguer foi também tema muito popular. Vamos ver:

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RIMANCE DE DONA SILVANA

Indo a Dona Silvana
Pelo corredor acima
A tocar sua guitarra
(Oh, que tão bem a tangia!...)
Foi acordando seus pais
Que sua sesta dormiam.

— Tu que tens, Dona Silvana,
Tu que tens, ó filha minha?
— Ver minhas irmãs casadas
Vestidas à maravilha...
Eu, por ser a mais fermosa,
Por que razão ficaria?

— Não tenho com quem te case,
Senão bem te casaria...
Só se for conde Alberto...
(É casado e tem família...)
— Mande-mo aqui chamar
De sua parte e da minha.
Quero falar com ele
Dentro de uma Ave-Maria.

— Aqui estou, real senhor.
Que quer vossa senhoria?
— Quero que mates viscondessa
Pra casar com filha minha.
— Viscondessa não na mato
Que a morte não lhe é merecida.
— Mata, mata, conde Alberto,
Senão eu tiro-te a vida.

Indo o conde para casa
Mais triste que o mesmo dia,
Mandou fechar as janelas
Pra não ver que era dia;
Mandou pôr a sua mesa
Para fazer que comia.
As lágrimas eram tantas,
Já pela mesa corriam.

— Tu que tens, ó conde Alberto,
Tu que tens, ó meu amor?
— Manda o Rei que te matasse,
Manda o Rei e meu senhor.
Só se fosses pra um convento
Como freira recolhida...
— Darias-me o pão por onça
E a água por medida...

Ainda a palavra não era dita,
Já o Rei batia à porta:
Que lhe mandasse a cabeça,
Que era com pena de morte.
Que lha não desse trocada,
Que ele bem na conhecia.

— Adeus, moços, adeus, moças,
Adeus, espelho onde me eu via!
Adeus, jardins de flores,
Onde eu me advertia!
Anda cá, ó meu menino,
Que te quero abraçar!
Anda cá, á meu menino,
Que te quero dar de mamar!

Mama, mama, meu menino,
Este leite de paixão:
Hoje, contigo nos braços,
Amanhã, já no caixão.
Mama, mama, meu menino,
Este leite de amargura:
Hoje, contigo nos braços,
Amanhã, na sepultura.

Toca o sino no palácio...
— Ó mamã, quem morreria?
— Morreu a Dona Silvana
Pela traição que fazia:
Descasar os bem casados,
Coisa que Deus não queria.

A intervenção sobrenatural não é tão clara como na Nau Catrineta, mas a Dona Silvana morre “Pela traição que fazia: / Descasar os bem casados, / Coisa que Deus não queria”. Deus impediu que se consumasse essa traição, que levaria à morte a esposa do Conde Alberto.
Este Conde Alberto da lenda, ao menos na imaginação popular, identificar-se-ia ao homónimo que aparecia no Drama de Herodes dos Bailes de Reis
Esta história de Dona Silvana recolhemo-la há muitos anos de fontes orais.